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O meu primeiro romance

PODERÁ PENSAR-SE que teria sido decente, da parte do autor de O Diabo no Corpo, deplorar o barulho feito à volta de um romance antes de ter sido dada ao público a possibilidade de formar uma opinião. Contudo, estou decidido a não pedir desculpas. É claro que as modas passam. Quem sabe se a de amanhã não será, para o jovem escritor, a de queixar-se da actividade e do entusiasmo do seu editor? A coisa é hoje ainda suficientemente nova para nos não entristecer. Por isso, longe de imitar certos nobres pudores, não posso senão exprimir o meu reconhecimento, não tanto em meu nome pessoal, mas no de uma geração à qual são dadas facilidades desconhecidas das suas antecessoras. Todos os escritores compreenderão o meu júbilo ao encontrar reunidos num único homem dois editores que sempre me haviam parecido inconciliáveis: aquele que gosta apaixonadamente das obras que edita e aquele que lança livros.


Radiguet retratado por Modigliani
Raymond Radiguet retratado por Modigliani em 1915

É claro que, no caso presente, o autor não deixa de sentir algum embaraço ao ver-se transformado em menino-prodígio. Mas (perdoem-me a petulância) não será a culpa de todos aqueles que querem ver um milagre, para não dizer uma monstruosidade, nestas palavras bastante inofensivas: um romance escrito aos dezassete anos? É um lugar-comum, por consequência uma verdade, e não negligenciável: para escrever é preciso ter vivido. Mas o que eu gostaria de saber é em que idade é que se tem o direito de dizer: «Vivi.» Este pretérito perfeito não implica, logicamente, a morte? Por mim, creio que em qualquer idade, e desde a mais tenra, se viveu e ao mesmo tempo se começa a viver. Seja como for, não me parece demasiado impertinente reivindicar o direito de utilizarmos as nossas recordações dos primeiros anos, antes de terem ocorrido as últimas. Não é que condenemos o encanto poderoso que há em falarmos da aurora ao declinar de um belo dia, mas, por diferente que seja, não é menos interessante falar dela sem esperarmos que se faça noite. Julgava, aliás, que a juventude retomara durante a guerra um pouco do seu prestígio perdido. Ele não seria nenhum? Se pensarmos um pouco, trata-se de menosprezo pelos jovens, este espanto só porque um deles escreve um romance.

Será surpreendente não encontrar num livro sobre a adolescência essa famosa «inquietude» tão na moda desde há alguns anos? Mas para o herói de O Diabo no Corpo (que, apesar do emprego do «eu», conviria não confundir com o autor), o seu drama está noutro lugar. Esse drama nasce mais das circunstâncias do que do próprio herói. Vemos aí a liberdade e a falta de ocupação, devidas à guerra, modelarem um rapaz e matarem uma mulher. Este pequeno romance de amor não é uma confissão, sobretudo nos momentos em que mais parece sê-lo. É um defeito demasiado humano não acreditarmos senão na sinceridade daquele que a si mesmo se acusa; ora, exigindo um romance uma ênfase que raramente se encontra na vida, é natural que seja justamente uma falsa autobiografia a que mais verdadeira parece.

 

Texto publicado originalmente no semanário Les Nouvelles Littéraires, de 10 de Março de 1923, dia do lançamento, pelo editor Bernard Grasset, do romance O Diabo no Corpo. Traduzido por Maria da Piedade Santos.





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